ALAN FONTES: PINTURA FORA DE SI.
O artista Alan Fontes
apresenta-nos pinturas que se interessam em, pelo menos, duas vertentes
conceituais. De um lado, temos a pintura tratada em seus próprios termos,
grades, planaridades, ritmos, repetições. Por outro, a realidade que não se
contenta em exibir-se como imagem, ativando instâncias instalativas, exercendo
ilusões, agregações, convocando objetos cênicos, ganhando o espaço por fora de
si. A pintura está fora de si, esta é a frase que poderíamos proferir diante
das propostas de Alan.
Em duas séries de acentuada
pregnância, “A cidade”, iniciada em 2004 e “A casa”, iniciada em 2005, Alan
Fontes observa, a partir de pontos de vista distintos, o que faz dos nossos
lares algo tão diferente, parafraseando a pergunta do precursor da pop art, Richard Hamilton. Em “A
cidade”, Alan acentua a vista aérea de lugares, vilas, quadras, deixando as
informações mais específicas, mais identificáveis, sucumbirem ao modo de
tratamento das tintas, cores e gestos. Assim, os azuis e cinzas ganham de
qualquer possibilidade de reconhecimento específico do lugar. Diferente do que
fizera Malevich, ao reduzir as vistas de olhos de pássaros a reduzidíssimas
geometrias, alargando e estreitando, concomitantemente, as possibilidades da
pintura modernista, Alan aceita o caráter expressivo e os vestígios um tanto
mais documentais destes quarteirões. Se aproxima da paleta fotográfica de Gerhard
Richter, outro a executar vistas aéreas sobre as cidades. Assim, vemos, na
cidade de Alan, traçados urbanos onde as
quadras de esporte, os telhados das casas de duas águas, à maneira colonial, ou
retos como nos traçados modernos, servem, para a pintura, como grade e
informação, ao mesmo tempo. Mas, sobretudo, vemos as piscinas.
O azul-piscina na história da pintura
no século XX é um capítulo à parte, promovera a solidão em David Hockney, o
erotismo narcísico em Eric Fischl e continua a exercer intenso fascínio em
pintores atuais. Não somente a piscina como deleite, gozo, mas a condição
imagética que é deflagrada por tantas deformações do corpo nos efeitos dos
reflexos de luz, na complexidade do espelho. No mistério de se ver refletido, o
mergulho é de um azul mais profundo.
Em New York City, Mondrian se
empenhara em relacionar geometria e cidade, superposições ritmadas e cores
primárias. Uma consideração é fundamental para entendermos tal processo de
abolição da geometria como imagem. Ao ser perguntado sobre o motivo que o fazia
repintar inúmeras vezes as partes do branco da pintura, Mondrian respondera que
precisava vencer a cor para que ela produzisse força e não criasse uma mera
hierarquia. Ao observarmos Alan atento em colocar um mínimo de informações
sobre telhados, sem retirá-los de vez da pintura, deixando-os expressivos e
geométricos, sabemos que as lições entre presença, força e informação refizeram
esta possibilidade de uso da geometria.
Da série “A casa”, notamos o lado
de dentro das habitações. Na pintura La Foule, que se intitula a partir de uma
canção homônima interpretada por Edith Piaf, vemos uma casa fora do tempo
cronológico. Agregam-se elementos de distintas épocas, mobiliários com pés de
palito, espelhos como os dos camarins do Folie Bergere, fotografias de casas de
traçado modernista e um cartaz de Hiroshima Mon Amour, película de 1959 dirigida
por Alain Resnais.
No filme, a guerra serve como metáfora para que as
personagens ativem polaridades, vencedores e vencidos, enquanto o amor trata de
juntar lados opostos. Ainda que o mundo estivesse moralmente estilhaçado, erodido,
a maior parte da película se passa entre quatro paredes, no enlace de um casal
proibido, profanador. Na tentativa de criar a instalação, o preto e branco do
cinema invade a sala de exposição com um papel de parede no mesmo duotone que esvanece a cor para desfazer
a pintura, ampliando-a. Assim, o violáceo do amor, das paredes do camarim, da
invenção do ateliê só acontece no núcleo em que a pintura é emissão de calor,
de abraço, de envolvimento. O que faz dos nossos lares algo tão diferente,
poderíamos responder a Hamilton, mais do que os eletrodomésticos, os cartazes,
a tela da TV, é o invisível dos afetos que dotamos às coisas e às pessoas com
as quais decidimos compartir.
MARCELO CAMPOS - Professor Adjunto do Departamento de Teoria e História da Arte e coordenador da graduação em artes do Instituto de Artes da UERJ. Doutor em Artes Visuais pelo PPGAV da Escola de Belas Artes/ UFRJ.
MARCELO CAMPOS - Professor Adjunto do Departamento de Teoria e História da Arte e coordenador da graduação em artes do Instituto de Artes da UERJ. Doutor em Artes Visuais pelo PPGAV da Escola de Belas Artes/ UFRJ.
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